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Pará adia para 2030 o prazo de chips de rastreamento no gado: o que isso muda para produtores e consumidores

Pará adia para 2030 o prazo de chips de rastreamento no gado: o que isso muda para produtores e consumidores

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Um papo reto sobre chips no boi

Imagine que você está tomando um café com um amigo que trabalha na pecuária da Amazônia. Ele te conta que, de repente, o governo do Pará decidiu empurrar a data limite para colocar chips e brincos nos bois e búfalos de 2024 para 2030. A primeira reação pode ser “mais tempo, menos pressão”, mas a história por trás desse número tem muito mais camadas do que parece. Neste texto eu vou destrinchar o que está acontecendo, por que isso importa para quem produz, para quem compra carne e, principalmente, para quem se preocupa com a floresta que ainda cobre grande parte do estado.

O cenário da pecuária na Amazônia

A Amazônia não é só um pulmão verde; ela também abriga o maior rebanho bovino do Brasil. Segundo dados do IBGE, o Pará concentra cerca de 30% do gado do país. Essa presença massiva traz duas contradições: de um lado, há geração de renda, emprego e alimento; de outro, há denúncias recorrentes de desmatamento ilegal ligado à expansão das pastagens.

Nos últimos anos, o mundo tem cobrado cada vez mais transparência da cadeia produtiva. Consumidores na Europa, nos EUA e até aqui no Brasil já perguntam: “Essa carne veio de uma área desmatada?”. E os grandes compradores – redes de supermercado, frigoríficos e exportadores – precisam responder a essas perguntas para não perder mercado.

Como nasceu a ideia dos chips

Em setembro de 2024, o Pará lançou a primeira política pública de rastreamento de gado no Brasil. O objetivo era simples, mas ambicioso: criar um “CPF” para cada animal, permitindo saber onde ele nasceu, onde passou e se esteve em fazendas com irregularidades ambientais ou de trabalho. O primeiro boi a ganhar esse número recebeu o nome simbólico de “Pioneiro”, numa cerimônia que contou com o governador Helder Barbalho.

O mecanismo técnico é parecido com o que usamos em animais de companhia: um chip RFID (identificação por radiofrequência) inserido sob a pele e um brinco com número de série na orelha. Quando o animal passa por um ponto de controle – por exemplo, ao entrar em um frigorífico ou ao ser levado a um leilão – o leitor capta o código e registra a movimentação em um banco de dados estadual.

Por que o prazo foi adiado?

Originalmente, o decreto exigia que todos os produtores instalassem o sistema até 31 de dezembro de 2024. Mas, como acontece em muitas políticas públicas, a realidade do campo bateu à porta: pequenos e médios produtores ainda estavam se adaptando, a logística de compra e instalação dos chips era cara, e a capacitação técnica ainda era incipiente.

Durante um Encontro Ruralista da Federação da Agricultura e Pecuária do Pará (FAEPA), o governador Barbalho assinou um novo decreto que estende o prazo até 2030. Essa decisão veio menos de um mês após a COP 30, realizada aqui em Belém, onde a discussão sobre desmatamento e mudanças climáticas estava no centro das negociações. O governo, ao adiar, sinaliza que quer dar tempo suficiente para que o setor se organize sem causar rupturas econômicas.

O que muda na prática para o produtor?

  • Investimento inicial: o custo de um chip varia entre R$ 30 e R$ 50, mais a mão‑de‑obra para a implantação. Com a extensão do prazo, o produtor pode planejar a compra em etapas, evitando um desembolso grande de uma só vez.
  • Capacitação: o estado promete cursos gratuitos de manejo dos dispositivos e uso do sistema de registro. O tempo extra permite que mais produtores participem desses treinamentos.
  • Conformidade ambiental: ao rastrear cada animal, fica mais fácil comprovar que a carne não veio de áreas desmatadas, o que abre portas para mercados premium que pagam mais por produtos “limpos”.
  • Logística de comercialização: frigoríficos que exigem o CPF do gado podem planejar suas compras com antecedência, reduzindo risco de rejeição de lotes.

Benefícios para o consumidor

Se você costuma ler rótulos e se preocupa com a origem da carne que coloca no prato, a tecnologia de rastreamento traz duas vantagens claras:

  • Transparência: ao escanear o código (ou consultar um site oficial), você pode ver a trajetória do animal, desde a fazenda de origem até o ponto de venda.
  • Segurança: o registro impede que carne proveniente de áreas de desmatamento ilegal entre na cadeia de suprimentos formal.

Esses fatores podem influenciar a decisão de compra, especialmente em nichos de mercado que valorizam sustentabilidade – como restaurantes gourmet, redes de fast‑food que têm metas de redução de impacto e consumidores conscientes.

Desafios ainda a superar

Mesmo com o prazo ampliado, ainda há obstáculos que podem atrasar a adoção plena do sistema:

  1. Infraestrutura de leitura: pontos de controle precisam de leitores RFID funcionando 24h por dia, o que implica investimento em energia e manutenção.
  2. Conectividade: muitas áreas rurais do Pará ainda têm acesso limitado à internet, dificultando a atualização em tempo real dos dados.
  3. Resistência cultural: alguns pecuaristas veem o controle como uma intromissão do Estado e podem demorar a aceitar a mudança.
  4. Fiscalização: o sucesso depende de auditorias efetivas para garantir que os registros não sejam falsificados.

O governo tem sinalizado que vai investir em torres de comunicação e em parcerias público‑privadas para suprir esses gaps, mas a execução ainda está por vir.

Impacto no comércio internacional

O Brasil já é o maior exportador de carne bovina do mundo, e a Amazônia responde por uma fatia significativa das exportações. Países como a China, os Emirados Árabes e a União Europeia têm políticas rígidas de origem sustentável. Quando um comprador solicita a prova de que a carne não está associada a desmatamento, o chip pode ser a chave para fechar o contrato.

Além disso, a certificação de “carne livre de desmatamento” pode gerar um diferencial de preço. Estudos de mercado apontam que consumidores dispostos a pagar até 15% a mais por produtos rastreáveis podem impulsionar a rentabilidade dos produtores que adotarem o sistema rapidamente.

Um olhar histórico: de onde vem a pressão?

O debate sobre gado e desmatamento não é novo. Desde a década de 1990, ONGs e órgãos internacionais alertam que a expansão das pastagens é uma das principais causas de perda de floresta na Amazônia. Em 2004, o Brasil assinou o Plano de Ação para a Redução do Desmatamento na Amazônia Legal (PARD), que incluía metas de controle da pecuária.

No entanto, as metas nem sempre foram cumpridas. A falta de mecanismos de monitoramento eficazes fez com que muitas áreas desmatadas continuassem a ser usadas para pastagem sem que houvesse registro oficial. Foi aí que a tecnologia de satélite e, mais recentemente, o RFID ganharam espaço como ferramentas de fiscalização.

Como funciona o “CPF” do boi na prática

Vamos imaginar o dia a dia de um produtor que decidiu aderir ao programa:

  1. O veterinário insere o chip subcutâneo no bezerro, que recebe um número único.
  2. Um brinco com o mesmo número é colocado na orelha. Ambos são registrados no sistema estadual.
  3. Quando o animal é transferido para outra fazenda, o novo proprietário escaneia o chip e atualiza o registro com a nova localização.
  4. Ao chegar ao engorda ou ao leilão, o animal passa por um leitor que confirma sua identidade e gera um relatório de movimentação.
  5. No frigorífico, o código é lido novamente e vinculado ao lote de carne, que passa a ter um histórico completo disponível para o consumidor final.

Todo esse fluxo acontece em questão de segundos, graças à tecnologia RFID, que não requer contato físico direto para a leitura.

O que esperar para 2030?

Com o prazo estendido, o caminho até 2030 pode ser dividido em três fases:

  • 2025‑2027: fase de implantação piloto em regiões estratégicas, com foco em treinamento e ajustes de infraestrutura.
  • 2028‑2029: expansão para a maioria dos produtores de médio e grande porte, com incentivos fiscais para quem aderir antes da data final.
  • 2030: consolidação do sistema, com cobertura quase total do rebanho e integração ao mercado internacional de carne sustentável.

Se tudo correr como planejado, o Pará pode se tornar referência mundial em rastreamento de gado, inspirando outros estados e até outros países a adotarem soluções semelhantes.

Conclusão: tempo extra, mas ainda com pressa

O adiamento para 2030 não é um convite ao ócio. Pelo contrário, ele oferece um intervalo crucial para que produtores, autoridades e a sociedade civil alinhem expectativas, resolvam gargalos técnicos e construam confiança no sistema. A transparência que os chips prometem pode transformar a percepção da carne amazônica no mundo, abrir novos mercados e, quem sabe, reduzir a pressão para desmatar mais áreas.

Se você, leitor, ainda tem dúvidas sobre como essa tecnologia pode impactar o seu prato ou a sua fazenda, a resposta está nos detalhes: mais tempo para se adaptar, mais dados para provar que a carne vem de forma responsável e, no fim das contas, uma chance de conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental. E isso, no meu ponto de vista, vale muito mais que um simples adiamento de prazo.