Nos últimos dias, o Brasil virou o centro de um debate que parece mais um duelo de argumentos do que uma simples discussão econômica. De um lado, o World Inequality Report 2026, elaborado por um time internacional que inclui o famoso economista Thomas Piketty, aponta que a desigualdade no país está aumentando. Do outro, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) celebra que, em 2024, o Brasil atingiu o menor nível de desigualdade em 30 anos. Como assim? Como duas fontes tão respeitadas podem chegar a conclusões tão diferentes?
O que cada estudo realmente mediu?
Antes de mergulharmos nas cifras, vale entender a base de cada pesquisa.
- World Inequality Report 2026: combina dados da Receita Federal (declarações de Imposto de Renda) com informações do IBGE. Essa mistura permite captar, com mais precisão, a renda dos mais ricos, que costuma vir de investimentos e ganhos de capital.
- Nota técnica do Ipea: usa exclusivamente a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Essa pesquisa visita casas, faz perguntas sobre renda e gera uma visão geral da distribuição de renda, mas tem dificuldade em captar a renda do topo da pirâmide.
Essa diferença metodológica é o ponto de partida para entender por que os resultados divergem.
Por que a renda dos mais ricos importa tanto?
Quando falamos de desigualdade, não basta olhar apenas para a renda média ou para a pobreza extrema. O que realmente mexe com o índice de Gini (ou outros indicadores) é a concentração de renda nas mãos de quem tem mais.
Estudos que dependem só da PNAD tendem a subestimar a renda dos 1% mais ricos, porque:
- Essas famílias muitas vezes não recebem salários, mas sim rendimentos de investimentos, que não são declarados em pesquisas domiciliares.
- É mais difícil alcançar esses domicílios, que podem estar em áreas mais seguras ou ter rotinas que dificultam a entrevista.
Já a Receita Federal tem, em teoria, o número exato do que foi declarado – embora também existam limitações, como a atualização dos dados e possíveis distorções por mudanças na tributação.
O que os números realmente dizem?
Vamos aos principais indicadores citados nos dois estudos:
- World Inequality Report: a fatia da renda nacional dos 10% mais ricos subiu de 57,9% (2014) para 59,9% (2021), recuando levemente para 59,1% (2024). O índice que compara a renda dos 10% mais ricos com a dos 50% mais pobres subiu de 53,7 para 63,5 entre 2014 e 2024, indicando aumento da desigualdade.
- Ipea (PNAD): o coeficiente de Gini recuou de 61,5 para 50,4 (quase 18% de queda). A renda média per capita aumentou quase 70% entre 1995 e 2024, e a pobreza extrema caiu de 25% para 5% no mesmo período.
Em resumo, o Ipea mostra uma melhora geral na renda e na redução da pobreza, enquanto o relatório internacional destaca que o topo da pirâmide está ficando ainda mais rico.
O que isso significa para a gente, no dia a dia?
Se você está pensando: “Isso não tem nada a ver comigo”, talvez esteja subestimando o impacto da concentração de renda. Veja alguns efeitos práticos:
- Consumo e preços: quando a maior parte da renda fica nas mãos de poucos, o consumo tende a se concentrar em bens de luxo, enquanto a demanda por produtos básicos pode ficar estagnada, pressionando preços.
- Oportunidades de trabalho: um cenário de alta desigualdade costuma gerar menos mobilidade social, dificultando o acesso a boas vagas e a investimentos em educação.
- Políticas públicas: governos podem se sentir pressionados a criar programas de transferência de renda (como o Bolsa Família) ou a reformar o sistema tributário, como a proposta de reforma do Imposto de Renda que isenta quem ganha até R$ 5 mil e cria alíquota mínima para quem ganha acima de R$ 50 mil.
Em outras palavras, a forma como a renda está distribuída afeta tudo, desde o preço do pão até a qualidade da saúde pública.
O que o governo está fazendo?
Lula e seu time têm usado os números positivos do Ipea para reforçar a narrativa de que o Brasil está avançando. O presidente chegou a divulgar, nas redes sociais, que mais de 8 milhões de pessoas saíram da pobreza e que o país saiu do mapa da fome, segundo a FAO.
Ao mesmo tempo, especialistas apontam que o governo tem adotado medidas que podem, a longo prazo, reduzir a concentração de renda, como:
- Reforma do Imposto de Renda (isenção para quem ganha até R$ 5 mil, alíquota mínima para quem ganha acima de R$ 50 mil).
- Ampliação de programas de transferência de renda.
- Investimentos em infraestrutura que geram empregos.
Mas a eficácia dessas políticas ainda depende de como elas serão implementadas e de como o cenário econômico evoluirá nos próximos anos.
Qual estudo confiar?
A resposta não precisa ser “um ou outro”. Na prática, os dois trazem informações valiosas, mas com focos diferentes:
- Se o seu interesse é entender a situação das famílias de baixa renda, a PNAD do Ipea oferece dados mais recentes e detalhados.
- Se você quer analisar a concentração de riqueza e o impacto dos 1% mais ricos, o World Inequality Report, com dados da Receita Federal, oferece uma visão mais completa.
O ideal é combinar as duas fontes, reconhecendo as limitações de cada uma, para ter uma visão mais equilibrada da realidade brasileira.
O que podemos esperar para o futuro?
Algumas tendências já dão pistas:
- Digitalização da economia: investimentos em tecnologia tendem a gerar mais renda para quem já tem capital, podendo ampliar ainda mais a diferença entre ricos e pobres.
- Políticas de tributação: se o governo conseguir avançar na reforma do IR e melhorar a arrecadação de impostos sobre grandes fortunas, pode haver um freio ao crescimento da desigualdade.
- Educação e qualificação: programas que ampliem o acesso a educação de qualidade são cruciais para romper o ciclo da pobreza e reduzir a distância entre as camadas sociais.
Em suma, a luta contra a desigualdade não se resolve com um único relatório ou com um discurso político. É um processo contínuo, que exige dados confiáveis, políticas bem pensadas e, sobretudo, participação da sociedade.
Como você pode se envolver?
Mesmo que a discussão pareça distante, há maneiras de fazer a diferença no seu dia a dia:
- Se informe: acompanhe tanto estudos nacionais quanto internacionais. Entender as metodologias ajuda a interpretar os números.
- Participe: vote em candidatos que apresentem propostas claras para reduzir a desigualdade.
- Contribua: se puder, apoie ONGs ou projetos que trabalhem com educação, capacitação profissional ou assistência a famílias vulneráveis.
- Exija transparência: pressione órgãos públicos a disponibilizar dados mais detalhados e atualizados, como as declarações de Imposto de Renda em tempo real.
O debate está aceso, e cada um de nós tem um papel na construção de um Brasil mais justo.




