Na última sexta‑feira, 19 de dezembro de 2025, a tranquila orla de Le Touquet, no norte da França, foi palco de um espetáculo inusitado: dezenas de agricultores despejaram sacos de esterco, pneus, repolhos e galhos em frente à casa de praia do presidente Emmanuel Macron. Não foi só uma questão de fazer sujeira. Cada saco, cada objeto, carregava uma mensagem clara – “Não ao Mercosul” – escrita até num caixão improvisado. O que começou como um protesto local acabou ecoando um debate que envolve toda a União Europeia, o Mercosul e, claro, o Brasil.
Por que os agricultores franceses estão tão irritados?
O ponto de partida da revolta é o acordo comercial UE‑Mercosul, negociado durante anos e que, em teoria, deveria abrir mercados para produtos agrícolas de ambos os lados. Na prática, os produtores europeus temem que a entrada massiva de carne, soja, arroz, mel e outros alimentos sul‑americanos, produzidos com normas diferentes das europeias, destrua a competitividade dos seus próprios produtos.
- Preços impossíveis de igualar: os agricultores alegam que as exportações do Mercosul chegam ao mercado europeu a custos muito menores, graças a subsídios e a custos de produção mais baixos.
- Normas sanitárias e ambientais: há a preocupação de que produtos com padrões menos rigorosos de uso de agrotóxicos ou de bem‑estar animal entrem nas prateleiras europeias, criando uma “concorrência desleal”.
- Política agrícola comum (PAC) em risco: o acordo poderia enfraquecer a PAC, que já é alvo de críticas dentro da UE, mas ainda representa um importante suporte financeiro para os agricultores.
Essas queixas não são novas. Há dois anos, os produtores vêm protestando contra a assinatura do acordo, mas até agora nada mudou de forma significativa.
O que aconteceu em Le Touquet?
O protesto foi cuidadosamente orquestrado. Os manifestantes levaram sacos de esterco – símbolo da vida no campo, mas também do cheiro desagradável que eles temem que o acordo traga para a Europa – e pneus usados, que representam o lixo que, segundo eles, a UE está disposta a aceitar para fechar o negócio. Repolhos e galhos completaram o cenário, transformando a frente da mansão de tijolos vermelhos em um verdadeiro “campo de batalha” simbólico.
Além do material, a mensagem escrita em um caixão – “Não ao Mercosul” – reforçou a seriedade do protesto. O uso de um caixão não foi por acaso; ele simboliza a “morte” que os agricultores acreditam que o acordo trará ao seu modo de vida.
Como a UE reagiu?
Na mesma semana, a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, anunciou que a assinatura do acordo seria adiada. Inicialmente prevista para acontecer em 20 de dezembro, durante a cúpula do Mercosul em Foz do Iguaçu, a assinatura foi postergada para janeiro. O adiamento foi fruto de pressão da França, apoiada recentemente pela Itália.
Mesmo com a data empurrada, a frustração dos agricultores permanece. O sindicato FDSEA, representado por Benoît Hédin, classificou o protesto como “simbólico” e contra a “política europeia atual”. Para eles, o acordo representa um retrocesso, não só para a agricultura francesa, mas para toda a política agrícola da UE.
O que isso significa para o Brasil?
Para nós, brasileiros, o cenário pode parecer distante, mas as repercussões são reais. O Brasil é um dos maiores exportadores de soja, carne bovina e frango do Mercosul. Um acordo bloqueado ou renegociado pode atrasar a abertura de novos mercados europeus, impactando receitas de produtores que dependem das exportações.
Ao mesmo tempo, o protesto destaca a necessidade de o Brasil melhorar suas práticas agrícolas. Se a UE insiste em padrões mais rígidos, os produtores brasileiros terão que adaptar seus processos – seja reduzindo o uso de agrotóxicos, seja investindo em rastreabilidade e certificações de bem‑estar animal.
Além disso, a disputa traz à tona a importância de diversificar mercados. Enquanto a Europa permanece um objetivo estratégico, a Ásia, o Oriente Médio e a África continuam em expansão. O Brasil pode usar essa pressão como incentivo para acelerar acordos comerciais nesses outros blocos.
Próximos passos e possíveis cenários
O que esperar daqui para frente? Aqui vão três possibilidades que eu vejo se desenrolando nos próximos meses:
- Renegociação do acordo: A UE pode ceder em alguns pontos, como a inclusão de cláusulas sanitárias mais rigorosas ou a criação de cotas de importação que protejam os agricultores europeus.
- Manutenção do status quo: O acordo pode ser assinado como está, mas com mecanismos de monitoramento que permitam ajustes futuros caso surjam desequilíbrios.
- Estagnação: A pressão dos agricultores pode levar a um bloqueio prolongado, atrasando a assinatura indefinidamente e gerando incerteza para os exportadores sul‑americanos.
Independentemente do caminho escolhido, o que fica claro é que o debate sobre comércio internacional não pode ser tratado apenas como números em uma planilha. Ele tem rostos humanos – os agricultores franceses que, ao despejar esterco na frente da casa de Macron, mostraram que estão dispostos a ir longe para defender seu sustento.
O que podemos aprender com esse episódio?
Para quem acompanha a política agrícola, esse protesto nos lembra de três lições importantes:
- O comércio é política: Negociações comerciais nunca são neutras; elas afetam vidas, comunidades e até a identidade cultural de regiões.
- Transparência gera confiança: Quando os acordos são negociados à porta fechada, a desconfiança aumenta. Incluir a sociedade civil no debate pode evitar explosões como a de Le Touquet.
- Adaptabilidade é chave: Tanto produtores europeus quanto sul‑americanos precisam estar preparados para ajustar suas práticas e estratégias diante de novas regras.
Se você, leitor, tem alguma conexão com a agricultura – seja como produtor, consumidor ou apenas alguém que se interessa por política – vale a pena observar como esses movimentos evoluem. Eles podem mudar o preço da carne no seu prato, o valor da soja no supermercado e até a forma como o planeta lida com a produção de alimentos.
Conclusão
O protesto em frente à casa de praia de Emmanuel Macron pode parecer um ato de rebeldia local, mas carrega um peso global. Ele evidencia a tensão entre a necessidade de abrir mercados e a proteção dos produtores locais. Para o Brasil, o desafio é claro: equilibrar a expansão das exportações com a adoção de práticas que atendam às exigências internacionais.
Enquanto a UE decide se vai assinar o acordo ou não, nós, aqui do outro lado do Atlântico, devemos acompanhar de perto, questionar e, quem sabe, até nos envolver nas discussões. Afinal, o futuro da alimentação mundial depende de como conseguimos conciliar interesses diferentes sem deixar ninguém na mão.




