Quando a gente ouve falar de acordos comerciais internacionais, a primeira imagem que vem à cabeça costuma ser a de grandes negociações em salas de reunião, cifras de trilhões e, claro, muito discurso político. Mas, na prática, esses acordos acabam tendo um impacto direto no campo, no prato que a gente coloca na mesa e até no futuro da nossa produção agrícola. É exatamente isso que está acontecendo agora com o acordo entre a União Europeia (UE) e o Mercosul, e a França acabou se transformando no principal obstáculo – e, ao mesmo tempo, no símbolo de uma agricultura francesa que vive uma série de crises.
## O que está em jogo?
A UE e o Mercosul – bloco que reúne Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai – estavam a poucos dias de fechar um tratado que abriria portas para exportações de soja, carne bovina, açúcar e outros produtos sul‑americanos rumo a mais de 27 países europeus. Para o Brasil, o acordo representaria um salto de competitividade, facilitando a entrada de nossos grãos e carnes nos mercados europeus, que já são grandes consumidores de alimentos de alta qualidade.
Mas a França, que historicamente tem sido uma das maiores defensoras da agricultura familiar e dos padrões sanitários rigorosos, tem usado o tratado como vitrine para protestar contra problemas internos que vão muito além do comércio internacional. A situação é tão complexa que, para entender o porquê da resistência francesa, precisamos olhar para três grandes frentes de crise que o país enfrenta:
1. **Crise sanitária animal** – uma dermatose nodular contagiosa que está dizimando rebanhos de gado e a necessidade de abates massivos para conter a epidemia.
2. **Gripe aviária** – que ameaça a região de Landes, principal polo de produção de patos para o famoso foie gras.
3. **Problemas estruturais na produção agrícola** – queda nas exportações de trigo, vinhos e destilados, déficit comercial inesperado e pressão sobre os subsídios da Política Agrícola Comum (PAC).
## A França como “bode expiatório”
A expressão “bode expiatório” costuma aparecer em contextos de culpa coletiva, quando um grupo ou país é apontado como responsável por problemas que, na verdade, têm causas mais amplas. No caso da França, o governo tem usado a oposição ao acordo UE‑Mercosul como forma de desviar a atenção das dificuldades internas que afetam os agricultores franceses.
### Dermatose bovina e gripe aviária
Nos últimos meses, o Ministério da Agricultura da França anunciou a necessidade de abater milhares de bovinos para conter a dermatose nodular contagiosa, uma doença que se espalha rapidamente e pode causar perdas econômicas devastadoras. Ao mesmo tempo, a gripe aviária chegou a ameaçar a produção de patos na região de Landes, onde se concentra a maior parte do foie gras do país. Essas duas crises simultâneas geram um clima de medo e incerteza entre os produtores, que temem que a abertura do mercado europeu para carnes sul‑americanas possa agravar ainda mais a situação.
### Deficit comercial e queda nas exportações
Em 2025, pela primeira vez em 50 anos, a agricultura francesa poderá registrar déficit comercial – ou seja, importar mais do que exporta. Essa inversão é explicada por três fatores principais:
– **Aumento dos preços internacionais** de commodities como cacau e café, que encarecem os insumos importados.
– **Queda nas exportações de vinhos e destilados**, consequência da guerra tarifária iniciada pelos Estados Unidos durante a presidência de Donald Trump e de safras ruins que reduziram a qualidade e a quantidade dos produtos.
– **Preços menores dos cereais** no mercado global, que deixam os produtores franceses em desvantagem competitiva.
Jean‑Christophe Bureau, professor da AgroParisTech, resume bem a situação: *”Foi conjuntural, mas se soma a recuos em relação a outros países europeus, como no setor de frutas e legumes. Temos um problema de conjuntura e outro de competitividade.”*
### Redução da PAC e dependência de subsídios
A Política Agrícola Comum (PAC) tem sido o alicerce da agricultura francesa nos últimos 30 anos, garantindo cerca de 9 bilhões de euros por ano em subsídios – o equivalente a dois terços da renda do setor. Contudo, o próximo orçamento da UE (2028‑2034) pode reduzir esses recursos em até 20%, o que coloca em risco a viabilidade econômica de muitas propriedades familiares.
Sem esse apoio, a França corre o risco de perder ainda mais competitividade frente a países como Espanha, Alemanha e, claro, as potências agrícolas da América Latina, que operam com custos de produção mais baixos e menos regulamentações.
## Como isso afeta o agro brasileiro?
Para nós, produtores e consumidores brasileiros, o embate francês tem duas implicações diretas:
### 1. Oportunidades de mercado podem ser adiadas
Se a França conseguir bloquear o acordo, o bloco europeu pode demorar mais para aprovar o tratado. Isso significa que as exportações brasileiras de soja, carne bovina, frango, açúcar e café continuarão sujeitas a tarifas e barreiras não‑tarifárias que já são altas. Cada atraso representa perdas de receita para milhares de produtores rurais que dependem da demanda externa.
### 2. Pressão por padrões sanitários e ambientais
A França tem sido uma das vozes mais críticas em relação aos padrões sanitários e ambientais dos produtos sul‑americanos. Mesmo que o acordo inclua salvaguardas – como tarifas de retaliação caso os preços de produtos latino‑americanos fiquem 5% abaixo dos europeus – os agricultores brasileiros ainda terão que lidar com inspeções mais rigorosas, certificações adicionais e possíveis restrições de importação.
Isso pode aumentar os custos de produção e logística, especialmente para pequenos produtores que não têm estrutura para atender a exigências burocráticas complexas.
## O que pode mudar a balança?
### Salvaguardas e mecanismos de monitoramento
O Parlamento Europeu aprovou recentemente um conjunto de medidas de proteção que criam um mecanismo para monitorar o impacto do acordo em produtos sensíveis como carne bovina, aves e açúcar. Se as importações aumentarem mais de 5% e os preços forem 5% inferiores aos europeus, tarifas de defesa podem ser aplicadas. Essa é uma tentativa de equilibrar a competição, mas ainda deixa muita incerteza para os exportadores brasileiros.
### O papel da Itália e de outros países europeus
A Itália tem se mostrado indecisa. Enquanto alguns eurodeputados defendem a assinatura rápida do acordo, outros temem que a pressão francesa possa levar a um bloqueio de toda a UE. Se a Itália decidir apoiar Paris, junto com Polônia e Hungria, o bloqueio pode ser efetivo, atrasando a ratificação até que a França resolva suas crises internas.
### Estratégias brasileiras
Diante desse cenário, o Brasil pode adotar algumas estratégias para mitigar os riscos:
– **Diversificar mercados**: Intensificar a presença em outros blocos como o CPTPP (Parceria Transpacífica) ou o acordo com a Coreia do Sul, reduzindo a dependência da UE.
– **Investir em certificações**: Buscar selos de sustentabilidade e rastreabilidade reconhecidos pela UE, como o Global GAP, para facilitar a aceitação dos produtos.
– **Fortalecer a diplomacia agrícola**: Manter um diálogo constante com autoridades europeias, apresentando dados de segurança sanitária e boas práticas ambientais.
– **Apoiar políticas internas**: Pressionar o governo brasileiro a melhorar a infraestrutura de inspeção e a capacitação de pequenos produtores, para que eles estejam prontos caso o acordo avance.
## O futuro da agricultura francesa e brasileira
A longo prazo, a situação da França pode servir como um alerta para o Brasil. A dependência excessiva de subsídios, a falta de inovação tecnológica e a rigidez regulatória são fatores que podem comprometer a competitividade de qualquer país agrícola.
Por outro lado, a crise francesa também demonstra que a adaptação é possível. O país tem investido em agricultura de precisão, biotecnologia e práticas agroecológicas para tentar recuperar sua posição no mercado global. Se essas iniciativas derem certo, a França pode voltar a ser um parceiro estratégico para o Mercosul, ao invés de um bloqueador.
Para o Brasil, o caminho ideal passa por equilibrar a expansão das exportações com a melhoria da qualidade e da sustentabilidade dos produtos. Isso inclui:
– **Adoção de tecnologias digitais** (satélites, drones, IA) para otimizar o uso de insumos e reduzir perdas.
– **Transição para sistemas agroflorestais** que aumentem a resiliência às mudanças climáticas.
– **Capacitação de jovens agricultores** para evitar o êxodo rural e garantir a continuidade das famílias no campo.
## Conclusão: um acordo que ainda está em construção
O acordo UE‑Mercosul ainda não foi assinado, e a resistência francesa deixa tudo em aberto. Enquanto isso, o agro brasileiro continua a produzir em ritmo acelerado, mas precisa estar preparado para possíveis mudanças nas regras do jogo.
Se a França conseguir impor suas condições, o bloco europeu pode exigir ainda mais garantias sanitárias e ambientais, o que encareceria a exportação de nossos produtos. Por outro lado, se o acordo for ratificado, poderemos ver uma nova onda de oportunidades de mercado, com acesso a consumidores europeus que cada vez mais buscam alimentos de alta qualidade e rastreabilidade.
O que eu levo dessa história? Que a política comercial não é algo distante da nossa realidade. Cada decisão tomada em Bruxelas ou em Paris tem reflexos diretos no preço do milho, no custo da carne no supermercado e nas oportunidades de trabalho no campo. Por isso, vale a pena acompanhar de perto esses debates, entender os argumentos de cada lado e, principalmente, cobrar dos nossos representantes que busquem acordos que realmente beneficiem o produtor brasileiro sem comprometer a sustentabilidade.
**E você, o que acha?** Acredita que a França tem razão ao proteger seu agro, ou vê o bloqueio como um obstáculo ao desenvolvimento global? Deixe seu comentário e vamos continuar essa conversa – afinal, a agricultura é um assunto que nos toca a todos, seja onde estivermos.
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*Este artigo foi escrito com base em informações divulgadas pelo G1 e complementado com análises de especialistas em comércio agrícola. As opiniões aqui expressas são de autoria própria e não representam necessariamente a posição de qualquer instituição.*




