Nos últimos dias o Brasil voltou a ser o centro de uma discussão que parece não ter fim: a desigualdade está diminuindo ou, na verdade, ainda aumenta? Dois relatórios recentes chegam a conclusões opostas e, como sempre, o assunto ganha ainda mais força nas redes sociais e nos corredores do Palácio do Planalto.
Dois números, duas histórias
De um lado, o World Inequality Report 2026, produzido por um grupo internacional de economistas liderado por Thomas Piketty, aponta que a renda concentrada nas mãos dos mais ricos subiu entre 2014 e 2024. Segundo o relatório, o Brasil continua entre os países com maior desigualdade do mundo.
Do outro, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou uma nota técnica que afirma que a desigualdade chegou ao menor nível dos últimos 30 anos em 2024. O documento também destaca um aumento significativo da renda dos mais pobres e a queda da pobreza extrema para patamares inéditos.
Essas duas narrativas colidem exatamente no momento em que o governo Lula celebra os resultados como prova de que as políticas sociais estão dando frutos. Mas será que os números realmente contam a mesma história?
Como cada estudo mede a desigualdade
Para entender a divergência, é preciso olhar para a metodologia.
- Ipea: usa apenas dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) do IBGE. Essa pesquisa entrevista famílias e registra a renda declarada pelos moradores.
- World Inequality Report: combina a PNAD com informações da Receita Federal, ou seja, declarações de Imposto de Renda (IR). Esses dados capturam rendimentos de investimentos, capital e outras fontes que muitas vezes não aparecem nas pesquisas domiciliares.
Os economistas concordam que as pesquisas domiciliares tendem a subestimar a renda dos mais ricos. O problema não é só que eles declararem menos, mas que o método de coleta – visitas a domicílios – tem dificuldade de alcançar quem vive em condomínios fechados ou tem rendas predominantemente de capital.
O que os números realmente dizem?
Vamos separar os principais indicadores para ficar mais claro:
- Renda média per capita (PNAD): subiu quase 70 % de 1995 a 2024, de R$ 1.191 para R$ 2.015. Esse aumento reflete, em parte, os programas de transferência de renda como o Bolsa Família.
- Coeficiente de Gini (PNAD): recuou de 61,5 para 50,4, uma queda de quase 18 %. Esse número indica menor desigualdade, mas ainda está longe de ser baixo.
- Participação dos 10 % mais ricos (World Inequality Report): subiu de 57,9 % da renda nacional em 2014 para 59,9 % em 2021, recuando ligeiramente para 59,1 % em 2024.
- Participação dos 50 % mais pobres: caiu de 10,7 % em 2014 para 8,2 % em 2021, recuperando um pouco até 9,3 % em 2024.
Esses dados mostram que, embora a renda dos mais pobres tenha crescido, a fatia dos mais ricos ainda domina a maior parte da renda total. Quando se calcula o índice que divide a renda dos 10 % mais ricos pela dos 50 % mais pobres, ele sobe de 53,7 para 63,5 entre 2014 e 2024 – um sinal claro de que a distância entre os dois grupos aumentou.
Por que isso importa para a gente?
Talvez você pense: “Isso é coisa de economista, não muda nada no meu dia a dia”. Mas a desigualdade tem reflexos diretos no custo de vida, nas oportunidades de educação e até na segurança pública.
- Renda e consumo: quando a concentração de renda aumenta, menos pessoas têm poder de compra. Isso pode frear o crescimento de pequenos negócios e reduzir a demanda por produtos e serviços locais.
- Educação: famílias com menos recursos enfrentam mais dificuldades para investir em ensino de qualidade, o que perpetua o ciclo de desigualdade.
- Saúde: o acesso a serviços de saúde privados e a medicamentos de qualidade costuma ser mais restrito para quem está na base da pirâmide.
- Segurança: regiões com alta concentração de riqueza e grande número de pessoas em situação de vulnerabilidade tendem a registrar mais conflitos sociais.
Portanto, entender se a desigualdade está realmente diminuindo – ou se estamos apenas vendo um quadro parcial – ajuda a avaliar se as políticas públicas estão no caminho certo.
O que o governo está fazendo?
Independentemente das divergências metodológicas, o governo Lula tem adotado algumas medidas que podem influenciar a distribuição de renda:
- Reforma do Imposto de Renda: isenção para quem ganha até R$ 5 mil e criação de um imposto mínimo de até 10 % para quem recebe a partir de R$ 50 mil mensais.
- Programas de transferência: ampliação do Bolsa Família (agora Auxílio Brasil) e novos auxílios emergenciais que ajudam a elevar a renda das famílias mais vulneráveis.
- Política de empregos: investimentos em infraestrutura e estímulo ao setor de serviços que mantêm a taxa de desemprego em patamares historicamente baixos.
Essas ações são elogiadas por alguns analistas como passos importantes, mas críticos apontam que, sem uma tributação mais progressiva e uma captura mais eficaz da renda dos 1 % mais rico, os avanços podem ser limitados.
Qual a lição que podemos tirar?
O debate entre os dois estudos nos lembra que a desigualdade não é um número estático. Ela muda conforme a forma como medimos, conforme a política que aplicamos e, claro, conforme a dinâmica econômica – como a pandemia, que beneficiou quem tinha investimentos e prejudicou quem dependia de salários.
Para quem acompanha a política econômica, a mensagem é simples: não aceite um único número como verdade absoluta. Olhe para diferentes fontes, questione a metodologia e, principalmente, pense em como esses indicadores afetam a sua vida e a da sua comunidade.
O que fazer a partir de agora?
Se você se preocupa com a questão da desigualdade, aqui vão algumas sugestões práticas:
- Informe‑se: acompanhe tanto o Ipea quanto o World Inequality Report e veja como cada um apresenta os dados.
- Participação cidadã: pressione representantes políticos para que adotem políticas tributárias mais justas e que ampliem o acesso a serviços públicos de qualidade.
- Consumo consciente: dê preferência a empresas que pagam salários dignos e que investem em responsabilidade social.
- Educação financeira: busque entender como funciona a tributação e como ela pode ser usada para reduzir a concentração de renda.
No fim das contas, a discussão sobre desigualdade no Brasil continua aberta, e a resposta pode estar em combinar diferentes fontes de dados, melhorar a transparência dos números e, sobretudo, transformar esses números em políticas que realmente façam a diferença para quem mais precisa.




